O PIANO — 9. O ovo translúcido

Na plateia do teatro, a mãe de Virgínia se senta ao lado do Senhor Faustino. As aranhas os espiam.

Mariana Vieira Gregorio
4 min readNov 9, 2022

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Ovo com 6 perninhas e dois chifres e três olhos. Folha branca. Escrito: 9. o ovo translúcido

Sinto a excitação da plateia, inquietíssima, mãos suadas. No saguão da entrada, se empoavam de essências, perfumes, como se fosse um pré-coito, entrei no banheiro e vi uma menina a lavar a bucetita na água da pia, um pé em cima do mármore outro no chão, a água escorrendo, se enlameava de uma essência floral, lavanda e rosa e eucalipto, olhei-a e mesmo assim não parou de se lavar, que isso sua porca, ela disse: devemos nos preparar, devemos ficar cheirosas, uma virgenzinha, ritual de quem não conhece o fedor do sexo, não sabe que a carne deve ter cheiro de carne? Se não aguenta o próprio cheiro de mucosa e mijo e acre, o tal nauseabundo de dentro da buceta, é melhor nem tentar descobrir o que há. Que Virgínia minha filha faz a desvirtuar estas jovenzinhas, como se saísse luz do escuro profundo, como se fossem bonitas tais flores? É feia, querida, gordurosa, cheira a peixe, escamosa, não é uma flor, tem espinhos, fazem sangrar, doem, onde é que enfiaram o nojo? E agora toda a fileira cheira a essas essências falsas, rosas, eucaliptos, lavandas, ao meu lado há duas poltronas vazias, não querem sentir o cheiro do humano, elas se embasbacam pelo teatro, o teto pintado com anjos de asas azuis e virgens de mantos amarelos, pétalas de flores, o piano de cauda longa preto e lustroso, a plateia a nutrir esperanças de se deitar ali, as cordas martelando e moendo seus corpos, os órgãos escorrendo por entre os vazios das teclas. Não quero o piano nem o teto, mas sim, nos cantos e cortinas aveludadas, lá estão as aranhas a tecer inúmeros fios, a nos olhar com seus múltiplos olhos e julgar, o teto é tão alto que vivem ali aranhas milenares, sem nunca se incomodarem, um teatro, Virgínia, rio, fugiu de casa porque era escuro e cheio de aranhas e onde parou? No mesmo lugar, Virgínia-burra, mula, cabeça de fogo, tudo que pensa é em desejo, Altiva a mata antes de atingir seu ápice, de se aconchegar no tempo manso em que o sexo não importa, mas as aranhas, ah sim, os olhos por todas as partes, a vigilância dos nossos atos, chegar a uma idade em que se consegue ver no escuro, amar sem correspondência, compreender ao feio e ao nojo, deixar-se ser terra e humano e inteiramente humano, abandonado ao escuro das criaturas silenciosas, vê-lo, o rabo de Deus, o rabicho. Vivo com os espíritos malignos, mas não me incomodam; os seus, por outro lado, enfiou dentro da bucetita, milhõeszinhos de espíritos malignos a escorregar da garganta à vulva, vermezinhos, centopéias, é cócegas que sente? Viscosidades que quer? Pois bem, viva com teus animais, aranhinhas tecem teias. Ninguém deste teatro apaixonados por louvores de luxúria verá o que eu já sei deste espetáculo. Um homem tem a coragem de se sentar ao meu lado, o terno alinhado, a rosa na lapela, vem de um tempo antigo, brilhantina no cabelo. Sinto vontade de rir, abro os lábios e mostro os dentes, ele me olha de um modo violento. E a senhora quem é? Se espanta que posso me sentar neste lugar reservado aos poderosos. Mal sabem que também fui uma dessas jovens aristocratas, e como é fácil se perder na arrogância, vivo mal e como uma vez ao dia, sinto falta de lagostas e caranguejos, mas o bife sangrando me basta, basta a todos nós, o resto é firula. Sou nadinha, ninguém, a mãe de Virgínia. Virgínia? Virgínia-rosácea, a quatro mãos, veja, aponto com minha unha de terra o programa

A Quatro Mãos Espectrais
Altiva Costta toca em esplendor de Virgínia Rosácea

Em esplendor. Fala como se minha filha fosse um anjo. O homem me olha e dá uma meia-risada. Não gosto, é cheio de escárnio e arrogância, mas ele pega em minha mão, Deus me mandou sentar aqui, estou contente de ter te conhecido. As luzes pouco a pouco se apagam e ele não solta minha mão, aperta-a com força e leveza, vai brincando com os meus dedos, amaciando-os, tem a mão fria, estranha força me toma não consigo fugir de suas garras, no escuro vejo seus olhos brilharem: o terceiro na testa. Uma aranha papa-mosca. Os dentinhos que no claro eram salientes, brilham como as duas garrinhas da boca das aranhas, minhas pernas amolecem, submeterei-me? Que forças tenho eu contra elas? Há muito que peço que me engulam de uma vez, se amontoem sobre o meu corpo e me levem para debaixo da terra, olho-o mais uma vez: tem mesmo três olhos? O teatro está mergulhado no escuro, um único foco de luz sobre os dentes brancos e pretos do piano, de qualquer lugar do palco não se pode ver mais nada que isto. Tudo Altiva pensou. Altiva Costta, inseriu um t no sobrenome, finge a si mesma. Finge em tudo. Mergulhar assim a plateia no escuro como se enfiados dentro do útero faz de nós fetos sem consciência de si na redoma quente e turbulenta, uma espécie de morte a qual não sabemos que ganharemos vida, a luz e o ar a despontar as primeiras lágrimas, o grito desesperado do nascer. Tenho comigo a mão pegajosa da senhora que deu luz ao espírito a qual Altiva se alimenta e regurgita, reminiscência de carne terrosa; serei eu o único a não me deixar seduzir, não nasci: o útero de minha mãe era outro que o da mulher que me amamentou, outra foi a mulher que me criou, nunca tive mãe. Fui embalado por fios, nasci do ovo translúcido.

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