O PIANO — 8. Fetum de brilhantina

No camarim, alguém bate na porta. Este é um conto longo e erótico dividido em partes e que toca Noturnos do Chopin ao fundo.

Mariana Vieira Gregorio
4 min readNov 9, 2022

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uma planta desenhada em verde, papel manchado, escrito: 8. fetum de brilhantina

Abro a porta devagar, apertei o coque novamente, um buquê vulgar de rosas vermelhas salta-me ao rosto, entre eles um lírio laranja obsceno, por detrás do fetum de brilhantina um Senhor Faustino grisalho me sorri, ordeno rápida que Virgínia se esconda. Ora, Sr. Faustino, mas já? O homem entra no camarim, olha para todos os cantos, quer ver minha querida Virgínia, é um usurpador de tudo que vive e é divino, pois ele mesmo não sabe como é isso, as olheiras profundas de outrora, os dentinhos de vampiro com que mordeu minhas orelhas. Parabéns Altiva! Mas o Sr. nem viu o espetáculo. Não, é verdade, mas tudo o que dizem, não sabe que estrago tem feito entre nós, todos só repetem seu nome, o camarim cheira a coito e suor, Altiva está velha, mas se conserva impressionantemente bem, tem se alimentado de algum talento escondido, de sangue fresco, tem alguma lâmpada a iluminar aquele semblante oculto, os mesmos maneirismos de víbora, silente e traidora. Mas onde está? Quem é? Contaram-me que entre uma pausa e outra duas mãos surgem, mãos acobreadas, espectrais. É uma pena que não podem ver seu rosto enquanto toca, está bonito com o passar da idade. Não precisam ver meu rosto, se houvesse jeito cobria até as mãos. Mas diriam que é uma impostora. Ainda assim há gente que duvida, e por quê não iriam duvidar? É de admirar fazer sucesso tão velha, depois do ostracismo, depois de não ter alcançado nada, ainda que alardeava ser tocada por Deus, o toque sempre rígido, correto, o ouvido mudo para os desígnios divinos, faltava-lhe a iluminação, não sabia se comportar entre gente importante, ria e falava muito, não era capaz de dançar, tinha mania de afastar as roseiras com medo dos espinhos como se eles quisessem se enfiar naquela carne dura, tinha medo dos cavalos, das alturas, do mar, uma caipira trazida à força pela miséria, escondendo a própria mãe, cuspindo repolhos quando os encontrava, transava seca e tímida, abrindo as pernas como se fizesse um favor, um favor a mim? Eu herdei as fomes, as vontades, as ganâncias, eu sei ver o belo, reconhecer uma maçã podre mesmo lubrificada em cera brilhante, tinha visto tudo de importante que se há para ver no mundo; e agora ela se revelava já velha como a mais promissora das pianistas, ganhava prêmios, viajava o mundo, a plateia indo ao delírio, o que tinha acontecido? Diziam que quando toca, a música eleva o espírito, as almas saem dos corpos, flutuam, é coisa de ouvir pois não há nada pra ver, esconde-se no escuro o corpo todo, é Deus tocando, se esconde porque Deus não pode mostrar sua forma aos mortais, um truque que aprendeu comigo, o pianista não deve nunca se fazer presente, a música deve parecer que se toca por si mesma, misteriosa como o sopro do vento, a ressaca das marés, a lua vermelha emergindo no céu, um rouxinol a entoar o sublime numa manhã primaveril, ali no canto uma meia-calça esverdeada, penso que vejo um vulto, ouço um suspiro, atrás das cortinas? Lá está o segredo? Preciso me preparar, Sr. Faustino, faltam apenas quinze minutos. A porta se fecha num estalido seco de alívio, Faustino encardido, veio fuçando perto de minha pequena deusa, venho abraçá-la, hoje é um dia difícil para nós, sua mãe e este demônio na mesma plateia, é a chance de nos fazer maiores e melhores, é hora de um gozar supremo, esporro-de-Deus, desaparecermos diante da Vontade, nosso maior concerto, nenhum será tão imponente assim, olha-me, Virgínia, tenho de lhe dizer isso: este pode até ser o último, ah não, Altiva, gosto tanto, na cama não é o mesmo, a música que toca, mistério profundo? Cavernas, Altiva, por onde me embrenho, e a luz do sol me toca inteira, entende? Enquanto me escondia atrás da cortina pensei que o escuro, os terrores, as manchas emboloradas do espelho também me fizeram, também são luz, pois quando me molho, Altiva, caio num escuro, num poço, tudo se apaga, gretada, a morte, não posso temê-la como teme o vampiro que entrou aqui, como teme minha mãe a se alimentar de aranhas, e agora Altiva, deve tocar, tocar ainda mais, tenha a destreza de se abrir e se fechar em mim com uma mão e com a outra tocar minúcias, será tão belo, sinto até um pouco de medo, Virgínia-rosácea, o medo não é mau, também o pressinto, mas é com ele que tocaremos a mais bela música jamais tocada no mundo. O medo nos alimenta. Como o caramelo! Como o caramelo, Virgínia, que doçuras, mal posso suportar, está tão bonita hoje, o rosto fulguroso como aquele dia das Noturnas, o rosto vermelho das rosas despedaçadas, penso que tocará com a maestria dos divinos, não vai? Colho a seiva bruta que escorre, tem tanta água dentro de si, enlameia-se um pouco em minhas mucosas, novamente risonha, como ri fácil, Virgínia.

link para o índice (atualizado conforme publicação)

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