O PIANO — 10. O primeiro movimento

Altiva e Virgínia se apresentam. Você pode ler essa parte acompanhada de Nocturnes, Op. 9, n.1, de Chopin.

Mariana Vieira Gregorio
6 min readNov 21, 2022

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parte da partitura do n. 1 op. 9 dos Nocturnes de Chopin. Escrito 10. O primeiro movimento

Vejo a plateia entrar no transe do silêncio, o sinal soa, as jovens e senhoras pulam de susto nas cadeiras aveludadas, das cortinas vermelhas sobram riscas como veias, o teatro-placenta, antes mesmo da música soar homens se envergonham da ereção, tem medo de sujar os finos ternos que vestem, os cristais do lustre gigante tintilam suaves como se envoltos em excitação, impossível se manterem quietos, a primeira nota é sempre a dos lustres titilando. Soam os saltinhos da pianista, graves e secos, o relógio, o batuque ritmado do coração. Tudo Altiva pensou. A outra, a feita de plasma, não soa: entra de meia-calça, faz-se inexistente. Dói-me pensar que Virgínia é um fantasma a toda essa gente, nem ela sabe da sua existência de pura luz, anestesiada pelo desejo, seus movimentos são moles, não dá passos, rasteja-se serpente. A plateia não pode ver nada: o choque, o bafafá, se vissem. E também não tem de ver. O povo não entende os meios de Deus para criar o belo, nos acusariam de nojeiras, excrementos, fedores, pecaminosos, loucuras, abandonariam a Deus sem serem tocados pelos anjos. Os homens recebem o gozo de Deus sem o perceber, flores se mostrando em obscenidade, lírio-vulva-atormentada, o beija-flor introduzindo seu bico fino e comprido em busca do néctar, as corredeiras violentando a porosidade das margens, o agudo das pedras perfurando as águas, a espuma roçando a areia escura, os animais se esfregando em troncos e folhas, a carícia dos ventos e raios solares, o céu laranja e violáceo quase pornográfico dos crepúsculos, desejos do nosso Senhor. Se vissem e ouvissem saberiam, mas preferem permanecer cegos e surdos; a música de minhas mãos os hipnotizam como um espetáculo mágico, Deus a satisfazer seus arroubos de desejo. Sento-me no banco, meu corpo treme, Virgínia-rosácea ao meu lado, o branco dos olhos dela, corpo quente. Toca-me, roça joelho no meu, começo. A plateia prende o respirar, tem medo da explosão, preciso ir lentamente como Virgínia a me tocar devagar, guiando-me nos desígnios sagrados, a anágua de cetim frio, o primeiro movimento dura o tempo do seu desejo tomar forma. Altiva não me olha: tem sua atenção toda para o piano. Esse ciúme me ataranta, a garganta seca, preciso chamá-la de volta. Sempre o perigo de ir embora, de se despedir de mim e preferir ao piano, de me descobrir menor que a música que sai de seus dedos; respiro rápido, quero falar e mandar calar a boca o piano, deslizo as alcinhas sobre os ombros, ela se espanta, uma pausa inesperada na música, nunca sabe meus caminhos, é cega ao tocar, envolvo-a por trás para sentir suas tetas, mangas amarelas a torturar suas costas e esmagar sua carne, os mamilos-sementes a doer, abro minhas pernas, ela deve sentir agora as pétalas de minha flor esmagadas contra seu dorso, o desfalecer, Altiva-altiva, desde que eu era uma pobre garotinha, um inseto com desejo de me arregaçar, entrava em casa e sorria com vontade, vi o branco dos seus dentes, nunca tinha visto coisa igual, enquanto tocava as teclas do piano pensava que tocava seus dentes, que vontades que tinha que me mordesse, Altiva, tão sóbria, a falar das flores bonitas, do chá de jasmim, dos concertos que foi, de Deus tão enorme a nos olhar, apaixonei-me por seu Deus, o Homem benevolente que nos sorri, passava as tardes tocando as teclas a esmo, ensaiando para que não desistisse de mim, tocava-me a mão e uma coisa subia, não conseguia acertar as músicas mas descobri que gostava de parecer irrecuperável, delinquente, do seu prazer em ver a tataraneta de um compositor obscuro tão descoordenada, sem talento algum para a música, e falava-me do seu Deus. Esse Homem me salvou tantas vezes no escuro, pensando nele, Altiva, no seu Deus, descobrindo-me, abrindo os lábios com os dedos e enfiando o que roubava da cozinha: nabos, cenouras, pepinos, esfregando-me nos cantos da casa, esquecendo-me dos murmúrios roucos de minha mãe. Por que tinha que me lembrar de minha mãe? Sentada em algum lugar agora, respirando alto, apertando os olhos para conseguir me ver, ah sim, mamãe, vou mostrar-me um instante só, beijo a nuca de Altiva, sinto o arrepio, desço lentamente minhas mãos sobre seus dedos, uma pausa prolongada. Ninguém além de mim e da senhora ao lado está de olhos abertos. O primeiro movimento me deu sonolência, mas a plateia acompanhava com a cabeça, lento e vulgar, a música se desenrolando como uma moça a se despir. Sim, mesmo eu que sou surdo, pude ouvir o deslizar de cetim, o estalo da cinta, a renda sobre a pele, um despir lento, carícias e beijos, saliva, dedos tocando braços, pernas, línguas, escavar caminhos, tudo vi no rosto da plateia. Altiva nunca desconfiou da minha surdez, do poder de ler os corpos antes dos sons, de como a julguei mal pela postura diante da música, ao invés de se portar com a cabeça abaixada, o corpo curvado, serva fiel, dava umas olhadelas, estendia a mão, queria tocar a pele de Deus, abria-se assim, vulgar. Vulgar demais para os ouvidos de Deus. E agora nos condenava a tal irreverência, meu Deus neste momento daria tudo para ouvir um pouco do que eles ouviam. Ela os faz arrepiar, nesta sala lotada os fez pensar que estão sozinhos, indiferentes a quem senta ao lado, dentro de si, mergulhados na solidão aterradora, tocando com seus dedos as intimidades, eletrizando as pulsações, as vibrações de tudo? Como vibram as cordas deste piano. E eles vibram junto delas. Com que força Altiva as empunha? As mãos da mãe ao meu lado, derretidas. Estreita os olhos em busca de sua filha, teria olhos de animais noturnos, consegue vê-la? Nem eu mesmo via. Minha filha, Virgínia, dando-se a ser polvo. Uma forma escura a me desdenhar, engolindo a velha Altiva, não a vejo mas reconheço ventosas: elas brilham para meus olhos. Gruda gelatinosa, fria, oito braços, três corações, camuflada onde quer que vá, inchando-se de tinta preta, a mesma tinta preta que saiu junto às minhas vísceras quando dei luz ao bebê pré-maturo. O médico disse que era mecônio, merda nascia junto de minha filha mas bem sabia, desconfiei logo ali. Seu nascimento foi o começo da minha desgraça, meu marido morreu três meses depois perturbado pelo choro dela, chorando e urrando e pedindo, insaciável, mamando-me até me deixar magra, esquálida, sozinha, não é minha culpa que era um bebê infernal. Não é minha culpa que tive de botar esparadrapos na boca para parar de chorar, de algemar suas mãos com cadarços coloridos para não mexer na bucetita a todo momento. Grudando em tudo, em mim, pegajosa, escorrendo pelo chão da casa, criei-na qual um vulto, envergonhada de sua aparência, fechei as janelas, mas o Deus no armário e suas súditas aranhas me confortaram de tamanho infortúnio. Limpei Virgínia inúmeras vezes mas aparecia sempre suja: aquele líquido negro nela, manchando tudo. Agora vejo que dei à luz a um animal. O homem ao meu lado aperta mais forte minha mão, nos olhamos no escuro: seus olhos não tem emoção alguma. Penso que é surdo e jamais será enfeitiçado pelas quatro mãos, já eu, caro senhor, preciso me cuidar. Seria um crime imperdoável se eu sentisse aquilo despontar, depois de tantos anos no escuro, por obra de minha filha-polvo.

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