O PIANO — 7. Um campo de girassóis

Depois de um longo hiato, voltamos — eu, Virgínia e Altiva. Eu estou em casa, mas Virgínia e Altiva estão no camarim. Agora o índice fica nessa página.

Mariana Vieira Gregorio
5 min readNov 9, 2022

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desenho de um girassol. folha amarelada. escrito: 7. um campo de girassóis

Os olhos dela escuros, odiava quando ficava assim, sensível como uma flor delicada, tinas de água, queria tinas de água a todo momento, na sua casa mandou colocá-las, de vidro, para refratar toda a luz, cristais, prismas, a casa toda um estilhaço de luzes coloridas, raios, espelhos, em frente a cama pendurei um espelho grande e limpo e transparente, Virgínia aprendeu a se olhar na luz, e gostou tanto que toda a luz do mundo não era o suficiente, mandou abrir as paredes e cortar as árvores que atrapalhavam o caminho da luz, o sol atinge todo meio-dia em cheio no espelho, um pouco cada dia o derretendo, um dia desses ele estilhaça em cima dela, Virgínia sangrando de cacos solares, mas não adianta dizer nada para ela, nenhum não, me tem nas mãos pois Deus gosta de seu interior e bem me parece que toda essa necessidade estóica de luz era coisa Dele mesmo, não podia viver no escuro que de escuro já bastava a terra das entranhas dela e para florescer em suas infinitas pétalas úmidas tinha de se banhar no mais puro dos sóis. Altiva, somente no espelho de luz e translúcido posso me ver nua, acordo em lençóis manchados de amor, minhas clavículas, ombros, omoplatas, mãos, abro bem as pernas e vejo a flor lá dentro, os lábios esponjosos e rosáceos, comer me faz bem, tenho bochechas, as ancas largas, os seios fartos, não sou mais feita de escassez, sou farta e bela como a natureza, curvas, topografia de mim, sou agora terra lavrada, semeada, logo estarei inteira florida, um campo de girassóis. Enquanto me nutro Altiva treina, sempre rígida e tesa, mesmo com a certeza de encontrar Deus quando me toca continua a decorar as notas, diz que um branco a cega quando chega lá e pode pôr tudo a perder, o fim da música é êxtase, coração, alma, gemido-de-Deus, ao som do piano engulo morangos, a luz me banha inteira, chupo mangas, queimo caramelos, o sol me esquenta ao meio-dia, e se Altiva continua a tocar, enfio-me nos cabos da panela derramo o açúcar lá dentro, durmo novamente. Cada vez que gozo morro um pouco. Sei que morrerei daqui um pouco, quando os girassóis despontarem sobre a minha pele já estarei pronta para ser enterrada, mas até lá o tempo será generoso comigo, e devo ser generosa com Altiva que depois das lições da manhã vem se lambuzar em mim nas longas horas da tarde, por todos os cantos do meu corpo sua língua passa, chupa, morde, arregaça, é tanto desejo que quase desmaio, então me debruço sobre a vulva escura dela, de dobras múltiplas, e seu arfar me faz contente pois sou útil, trouxe-lhe a felicidade, e tocam seus dedos a serenata do entardecer. De noite, recolho-me exausta, durmo mais uma vez ao som do piano, Altiva e sua obsessão, toca os Noturnos de Chopin, aqueles que enlaçaram nossa paixão, durmo, a luz da lua a me iluminar, quando há lua, mas se acordo no escuro da noite tenho de acender todas as luzes, e mesmo assim as luzes da casa não são suficientes, o escuro a desmembra mais que o desejo, e acorda gritando, sonhos de aranhas, as malditas aranhas com quem foi criada, não há jeito de arrancá-las, entraram pela sua boca, narinas e orelhas, estão dentro dela, tecem suas teias entre os tendões e o tutano, teias prateadas, eu mesma já arranquei de dentro os fios cintilantes, não posso lhe contar que a mãe envenenou tanto seu sangue que não há mais volta. Acende as luzes mas deseja o sol, se são três da manhã tenho que me deitar com ela e fazer carícias e contar histórias e lembrar das coisas belas, e então recomeço, falo de mim, dos jantares, dos bailes, as músicas tocadas por anjos, as sobremesas, falo de como é bela, a mais bela entre todas, Virgínia-rosácea, até dormir, tudo em minha vida com Virgínia é regrado, depende de um tênue equilíbrio, qualquer palavra mal dita faz nascer os escuros, os terrores, os nojos, tenho de aparar flores, ter um punhado de cada cor, amarela, violeta, rosa, vermelha, lilás, branca, bordô, bem vistosas nos jarros, as tinas com água sempre fresca, transparentes, a música dos meus dedos sempre bela, mas não posso abandoná-la, não agora e muito menos hoje, Faustino atrás das cortinas vem me ver tocar, a belíssima a quatro mãos fantasmas que tanto falam, finalmente a vingança será servida, da maneira mais sublime. Beijo seus olhos escuros, digo: sua mãe verá a flor que desabrochou, Virgínia, sua mãe verá Deus e talvez se salve. Sabe como minha mãe é imunda. Beijo a boca, a língua dela pegajosa, sempre doce, sempre comendo doces agora, como é que atinjo neste camarim o sublime daquela primeira vez, o sublime dos prismas de nossa casa? A verdade, Deus sempre quer ouvir a verdade, Virgínia-rosácea, te chamava assim, fui arrebatada por uma coisa que não sabia que existia, lembra-se da meia-calça puída? Ela ri, tira de novo a meia-calça como aquele dia, veja, aqui um espelho tão mofado quanto aquele, todo o amor cultivado na casa de sua mãe e à revelia dela, mas também feito dos escuros de tudo, e ela refaz os movimentos como uma atriz bem treinada, puxando os fios da meia para baixo, lenta, demorada, Virgínia-eternamente-rosácea, abaixa-se, agora as nádegas acobreadas estão cheias como cumes, aquele dia querias mostrar uma coisa para mim, não queria? Sim, Altiva, veja. Por debaixo da calcinha, ela enfia a mão gorduchinha e a movimenta, afofa a terra, pensa na mais bela flor e escorre tão fácil a seiva bruta, gosto tanto de a ver repetindo gestos como se fosse uma fotografia, congelada no tempo, para sempre minha Virgínia, espalha o odor em volta das orelhas, cheiro-o, estou atrás dela, vejo meu nariz adunco no espelho, minha mão na sua virilha, alguém bate na porta. Já vai. Bate de novo, impaciente.

link para o índice (atualizado conforme publicação)

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