O PIANO — 6. A flor bubônica

Um conto longo dividido em partes. Este aqui inicia, vamos assim dizer, o segundo ato. Mudamos de local. Outros personagens surgem.

Mariana Vieira Gregorio
4 min readOct 21, 2022

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papel alaranjado, vinhetas marcadas, desenho abstrato de bulbos roxos, duas folhas e um pendente verde. está escrito 6. A Flor Bubônica

Minha mãe respondeu o convite, virá, Virgínia segura a carta de resposta nas mãos, trêmula, há muito não olho o rosto violeta de minha mãe, esverdeado, envergada sobre si mesma, a conversar com as aranhas, o que colocou no lugar do piano quando parti? Papel celofane, muito papel celofane minha filha, tenho obsessão pelo celofane pois brilha como o fogo mas não queima, pétalas que nunca morrem, todos os dias cubro um pouco mais a pilha com papel celofane mas não me sento entre eles, nã-não, não são macios, devem ser contemplados no escuro, as janelas sempre fechadas porque o ar de fora é feito de fuligem, na verdade é para não entrar os espíritos da família de seu pai, sempre atazanando, uma casa se deve manter cerrada, irrespirável, a única maneira de prendê-Lo, não deixá-Lo ir, quando você se foi escancarando demais a porta para passar o piano deixou a luz entrar e espantou as aranhas, berrei com a professora que coordenava os homens suados a empurrar o piano para fora, está deixando tudo escorrer, o óleo untuoso e sagrado das paredes avançando como a vazante de um rio, tudo que construí agora despejado, Virgínia, volte, pare, feche tudo antes que entrem, dei uma olhada no jardim tomado pela força bruta e viva da natureza, hera por toda a parte, ervas-daninhas e musgos, ventosas, mamonas, compreendi que me protegia, protegia a casa, lá a flor gorda e bubônica e de gomos espessos e gelatinosos como espigas, se tem a coragem de apertá-los espinhos despontam sangrando a mão, como é bela e má a natureza, cactos endurecidos, folhas em decomposição, podridão, Altiva aquela professora que nada sabia da terra, de enfiar-se debaixo da terra, da necessidade dos vermes para a vida se enervar, levando minha doce Virgínia, minha criança de olhos saltados pele da minha pele que sugou com vontade minhas tetas até o sangue, que andava sonâmbula pela casa e me olhava receosa, aparecendo sempre suja de gosma e luxúria, desejos açucarados, que lavei e lavrei fio por fio de cabelo até deixá-la limpa. Mamãe não pode entrar em casa, de jeito maneira, não pode entrar na casa que construí junto de Altiva, vai chegar enlameada de musgo e algas marinhas, rastejando qual um inseto rastros daquele óleo escuro, por quanto tempo vivi na imundície, me olhei em espelhos manchados de bolor, fui privada do mundo e das suas delícias, nem mesmo Altiva desconfia que Deus já nos presenteou com o paraíso, reminiscências de águas e luz, cristais, flores rasteiras, a planície, refrigerantes, doces, canela e páprica, café, tabaco, eletrodomésticos automáticos, nunca mais limpar, nunca mais sujar as mãos, Deus foi descansar, rest in peace, Virgínia, roubada, não por um homem como se imagina, não para casar na igreja com o vestido da bisavó e coberta de diamantes, mas para viver oculta sob os saltinhos de pianista da professora, fui eu que errei? Esperava que entrasse no corpo incauto o espírito do bisavô de nome complicado e suspirasse as notas da música esquecida, sim, eis a tarefa que meu marido no leito de morte me deixou: faça da nossa filhinha casada somente com a música de meu avô ou o tesouro se perderá. E se perdeu, o homem imaginou que a filha ia selar votos somente com o espírito e dentro dela ele enfiaria o colosso espectral de compositor amargo e deste colosso nasceria belas músicas, a salvação da estirpe, nasceria o herdeiro incestuoso que recuperaria todo o tesouro perdido da sua família, bem-feito, imaginar um destino assim para um filho de carne e osso, promessas feitas ao Diabo desde o tempo anterior ao do bisavô, sangue corrompido de poder e ambição frívola em decomposição como resíduos a se acumular, merdas e mijos seculares. Nada contei a Virgínia, o que diria? De alguma maneira, inventou um jeito de me agradar se casando e se tornando pianista como queria o pai, mas de um jeito tão torpe e obsceno que acabou enojando o morto e enterrando de vez o tesouro no mais fundo dos infernos, e agora o diabo reina de vez entre as paredes da casa, queimando as lâmpadas sempre amarelas, entornando o óleo de fritura em cima do fogão, cobrindo as paredes de mofo, gotejando a água na bacia de metal como se quisesse me mostrar o Tempo: menos um, menos um, menos um. Esqueça isso, Virgínia, Altiva lança longe o papel, Virgínia o vê voar e pousar sobre o chão do camarim, hoje vem o Senhor Faustino e nosso primor deverá ser dos melhores.

link para o índice (atualizado conforme publicação)

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