O PIANO — 5. Lembre-se das coisas belas

A última parte antes de algo realmente mudar; Virgínia e Altiva tocam juntas. Este é um conto dividido em partes, há um índice no final do texto.

Mariana Vieira Gregorio
5 min readOct 14, 2022

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desenho de espiral, escrito 5. lembre-se das coisas belas, em papel canson com vinheta, levemente marrom

Virgínia se aconchega em pleno esplendor, vestida com uma anágua leve, o cheiro me estonteia, Virgínia-rosácea, por que não se guarda? Que diabo te tenta? Toco os Noturnos de Chopin, toda a água de passado que afluía e confluía dentro de mim em vagas ansiosas jazem interrompidas pela solidez enevoada de Virgínia, os espíritos malignos da mãe cochichando tentações, aquelas pequenas aranhas papa-moscas de três olhos subindo por todo o seu corpo enquanto dorme a encher seus sonhos de visões infernais, tragédia secular a minha acabar aqui dando aulas de piano a uma jovem sem ambições e forrada de devaneios, a mão dela pousada em meu colo, o peso daquela mão tão pequena, arrastando-se miúda, aranhinhas, puxo suas mãos para que toque comigo, a quatro mãos agora Virgínia, a postura incorreta, parece que faz de propósito, o braço apático e solto, Virgínia atenção, a música é uma reprodução de tudo que é belo neste mundo, lembre-se das coisas belas. Olha-me embaçada, parece que não sabe o que é belo, o que espero dela? Só saberá tocar marcha fúnebre, seca, notas repetidas pela exaustão, corrosão do paraíso, aproximo-me da sua orelha e digo: a música deve ser para os Ouvidos de Nuvem. Endireito seus braços, seguro em sua cintura, a nuca desnuda, pequena corredeira por entre rochas escuras, encosto os lábios, o cheiro da flor selvagem atrás das orelhas, sentada entre minhas pernas feito uma criança grande demais, toca minhas mãos enquanto toco os Noturnos, sol, sol, lá, sol, lá, mi, lá debaixo, sol, dó, fá, sol, si, fá, dô-si-lá, o segredo é, Virgínia, aproveitar tudo que o piano dá, sente, um dó desta oitava é mais suave que este, chega a doer se pressiona assim, o toque, Virgínia, tem de ser como os anjos a tocar harpas, feche os olhos, não há nada a temer, Altiva, silêncio Virgínia, nada se deve ouvir enquanto o concerto se anuncia, respiração muda, gemer algum, nem pelo prazer de tocar, as pessoas querem esquecer que o pianista existe, querem que a música venha do próprio Deus, veja Virgínia…! Deus está entre nós! Recolho a seiva que escorre entre as coxas de moça madura, a seiva profunda dos frutos que dão água na boca, por um instante eu vi Deus nos olhando, boba, Altiva, ele não está nos olhando, ele está aqui dentro me sinto tão mole, desgraçada, como se tivesse morrido, morrido e voltado, como o filho dele, desacorçoada, de tudo des, desaparecida, desfalecida, destoada, Altiva, ofereço-lhe nesta vida de renúncias meu eu inteiro, mas não vá embora, ainda não, ainda há mais trabalho, toque mais uma vez outro número desses Noturnos, enquanto escorrego feito enxurrada de água por entre suas pernas, toque como se Deus ouvisse, apesar de achá-lo surdo feito uma pedra rolando montanha abaixo, uma rocha no fundo do oceano para sempre esquecida, das suas entranhas eu retirarei o sumo ainda maduro da fruta, o açúcar na minha língua, as raízes perniciosas que se alastram dentro e fundo, uma a uma as chupo como o gengibre, cria tubérculos, tão sólida, tão certa, não se importe Altiva, eu amo o ardido dos gengibres, o queimar na garganta, não se importe, Altiva, enterre o passado, chore agora, chore o que há de dor, aqui estou pronta para te servir, Altiva sempre tão ereta, curva-se sobre a cabeça de Virgínia entre suas pernas, as mãos tocando de cor a música sem nenhum tropeço, nenhum erro, a música se agigantando em notas e tempos, amontoando-se ao ápice, agora, Virgínia, Altiva, Deus, o estupor da nota se alongando e ressoando nos vidros das janelas, Virgínia-rosácea afasta a boca melada, os dedos de Altiva desencostam abruptos, o acorde ainda permanece no ar suspenso no espaço, gemido longo de Deus nos olhos claros de Virgínia-rosácea, vermelha, embaçada, no dente branco do sorriso fecundo. Virgínia, estes dedos trêmulos, há séculos não os sentia assim, a primeira vez quando tinha onze anos, o pastor me ensinava a ler a partitura, era exigente, fazia-me tocar horas e horas até sentir os dedos dormentes, o tato insensível, e neste engolfar-se de si mesmo pode-se tocar tudo, leve e sereno, tudo, e os dedos ficam trêmulos, trêmulos pois tocam sozinhos, guiados pelas cordas do Titeriteiro, desmaiados, onde está Ele, Virgínia? Onde está? Altiva, dê-me estes dedos, beijo os dedos brancos de tanto esforço, aqui está, dá um jeito de se enfiar nas minhas entranhas, você me ofertou cantos mais doces, ah sim, eu não poderia consegui-lo sozinha, veja, enfia seus dedos aqui mais uma vez, veja, que alagados, come-me, aí dentro cresce uma flor, tenho medo que seja feia como a de mamãe, toque-a com dedos de anjo e ela desabrochará bela, não me cale mais Altiva, deixe-me gemer, deixe-me estourar, por favor, desvirgina-me, não quero nunca um homem aqui, nunca um mastro a me destroçar, prefiro seus dedos de ouro, suas mãos de pianista, Altiva lambe os dedos e a abre qual as aranhas, oito patas, parecia que morreria, sim me encontro à beira da morte, que doce é ser arrebentada assim, tão querendo, tão fogosa, sinto até ciúme, faço-me mais violenta ainda, abrindo e fechando, deslizando por entre o botão da flor e o caule ainda verde, a boca do útero vermelha, Virgínia-rosácea Virgínia-violeta num tremer engalfinhou minha mão, puxou-a para o abismo do mundo, tive medo de perdê-la lá dentro, de nunca mais retornar, de amputar mãos de pianista, mas qual polvo soltou-a, obediente, os olhos tão claros agora que é como se emanassem luz. Virgínia-querida, traz Deus dentro de você. Enquanto é tempo, meu amorzinho, enquanto é tempo faremos este mundo pequeno para as músicas que ouvirão de nossos dedos.

link para o índice (atualizado conforme publicação)

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