O PIANO — 4. Feia a minha flor

Então, Virgínia se olha no espelho. No final, tem um índice em que se pode voltar, mas não ainda ir para frente: toda terça, uma parte nova de um conto mutilado.

Mariana Vieira Gregorio
3 min readOct 4, 2022

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rabisco em forma de flor, desenho em papel levemente rosa, escrito: 4. feia a minha flor

Altiva? Estou te ouvindo. O que é que fez este Senhor Faustino, hein? Já sinto rancor na sua voz e, além do mais, todos os homens são maus, não se pode esperar nada de bom neles, vejo-me no espelho, as bolas de bolor a manchar meu corpo, passo as mãos em minhas próprias coxas, se eu fosse um pouco mais ousada, ah sim, eu já estou sentindo, meus dedos tocam minha virilha, enrosco os dedos na jovem mata que cultivo qual jardim, aparo, águo, adubo, penso de repente se Altiva também achasse feia a minha flor, que triste, gostaria que fosse a mais bela flor que veria em vida, como aquela que desabrocha no paraíso de Deus, uma perfeita criação, úmida, terra, veludo, as pétalas se expandindo em dezenas de infinitos, uma flor que nunca morre, nunca pára de nascer, circunferências a se solapar em suavidade, e no centro o bico eriçado e ao mesmo tempo pendente das orquídeas: um botão hirto e suculento. Virgínia me faz adiantar a história de minha vida, para ela são só palavras de uma velha murcha mas para mim são meu tesouro, o segredo que acalenta e me fere todos os dias, ela não compreende, é muito jovem, não entende da alma calejada, lamentosa, não tem memórias a importunar, a assaltar seus olhos, uma taça de cristal que seja, o som das vagas ao passar os dedos na borda da taça me traz uma torrente de objetos almoxarifados, os jardins tão bem cuidados, mãos, assados agridoces, talheres de prata, música de anjos, risos de senhoras, danças elegantes, chifres de cervos mortos na parede, um mundo o qual nunca imaginei e que me exilaram à força quando meus dedos já não podiam tocar o semblante de Deus, acusaram-me de profana, machucaram-os com chibatadas me fazendo crer que Deus tinha me abandonado, arrancaram meu dom, a visão do paraíso me escapou pois tudo aquilo que me apresentaram era uma amostra dele. Paraíso este feito de jardineiros especialistas em desabrochar flores, de moças tão lindas porque empapadas em maquiagem, tecidos finos e bisturis, de fontes de água corrente que nunca cessavam, o sabor do vinho envelhecido, damascos e tâmaras, tão diferentes dos pobres nabos e repolhos e mandiocas de minha terra, figos açucarados e queijos vermelhos, cetins e tapeçarias, tudo sempre tão limpo e correto, as empregadas uniformizadas sem deixar o pó se alocar nunca nem mesmo sobre os livros, os pesados livros que nunca eram abertos, Virgínia, até me dá um ataque de riso ver estes seios tão maduros, tão inocentes são, suspensos por nada, tão pobres de tudo, não sabem da vida, da amamentação, do cair, Virginia vê no seu reflexo o roçado lavrado de sua pele, pastoreia com os dedos até os topos das colinas, apalpa o cabelo que cai em ondas, desvia-se do fascínio que o próprio corpo desperta e encontra, lá atrás, entre a fresta da porta, o nariz adunco de Altiva e aquele olho, o mesmo que a corrige nas notas embaralhadas, Altiva e seu bastão preto a tocar a partitura, impaciente a arrumar minhas mãos frouxas pressionando com o dedo no centro da minha palma, ali onde doía, demoro-me até ouvir seu corpo respirar, mas continua a enfadonha história interminável dos ricos que usurparam sua magia. Pobre velha! Se minha flor fosse perfeita, ao menos, poderia usá-la para tocar novamente para os Ouvidos-de-Nuvem. Altiva, toque uma música para mim! Quero ouvir o que esse babaca ouviu e desprezou, me espere na sala que vou já, num instante vou já, deixe-me antes me refrescar, tirar o suor que escorre melado, deixe-me estar nova e cheirosa, fresco novilho enrodilhado em algodão, deixe-me fazê-la mais uma vez feliz, pois ainda que minhas roupas desfaleçam puídas, meu corpo ressona como as virgens do paraíso, os passos se afastam pesados pelo corredor, saltinhos de professora de piano, cordas vai-e-vém do piano, tiro um pouco da terra e passo atrás das orelhas, há perfume melhor do que este daqui de dentro, das mucosas aguadas, laivos de sangue e excreção?

link para o índice (atualizado conforme publicação)

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