O PIANO — 3. Meia-calça

Esta é a terceira parte de um conto sobre Altiva, pianista, e Virgínia, que estava com muito calor.

Mariana Vieira Gregorio
4 min readSep 28, 2022

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desenho em caneta preta sobre papel amarelado com um pé em formato de balairina. está escrito 3. meia-calça

Virgínia, Deus inventou a arte com o único propósito de nos redimir, era o que eu costumava pensar até conhecer um homem, um homem muito rico e refinado que se impressionou com o meu talento, vejo pela fresta da porta Virgínia-rosácea, ela está toda em fulgor, não posso falar de Deus que fica assim, penso que falo com imenso amor e derretimento enquanto sua mãe inventa impropérios de dureza e rancor, a pobrezinha pende entre um Deus e outro e nunca ouviu por si nenhum Sussurro, o ar morno na nuca soprado por um serafim alado, primeiro ela tira a saia, se olha num espelho manchado, a meia-calça esverdeada, a pobre Virgínia se veste com as melhores roupas quando venho, uma fantasia de pianista colhida como frutas verdes de uma árvore tolhida, escolhe no armário um vestido que mais se parece uma anágua, este homem, vamos chamá-lo de Senhor Faustino, vindo de uma família quatrocentona, italiana, de negócios imobiliários, educado na Europa, família dessas que provém jantares beneficentes e financia institutos para jovens humildes, sonhava em criar uma escola de música clássica no Brasil, apesar dessa rudeza dessa falta de modos do jeito de terra vermelha que os daqui tem, penso que viu em mim as mãos refinadas que tanto procurava, ciente que os músicos mais valiosos se escondiam em igrejas pequenas, onde a gente pobre bate palmas e canta hinos de louvor. Enquanto fala Altiva me vê atrás da porta, devo me despir o mais lento possível, não tenho interesse nesta história, um tal de Senhor Faustino que irá tirá-la da pobreza, encantá-la e, de algum modo, traí-la, pois se não é esse o fim da história que fazia dando aulas para aprendizes estúpidas? Será que a todas conta a sua história, fico enciumada disso, ou vê algo especial em mim, a abandonada, bisneta de um compositor obscuro, tropeçando nas notas como bicho afoito, ou se muito beata usa a música como escudo e está por aí a evangelizar, mas penso que não: minha mãe que era boa em evangelizar, urrando os terrores do apocalipse, o sangue derramado das vítimas, o olho intravenoso de Deus, os rios tóxicos do inferno, as punições aos amantes da gula, luxúria e inveja, corvos bicando corpos, areias movediças, mares revoltos, dores extenuantes. Deslizo a mão pela meia-calça puída e cheia de bolinhas, que desgraça é viver desta maneira, suja e de roupas gastas tiradas do baú de tias-avós mortas, o fedor do corpo morto em todas as minhas roupas, a decomposição da carne a rasgar os tecidos, escolhi uma anágua que fora de minha mãe, acho-a tão bonita que me casaria nela, é lisa e macia, escorrega em minhas mãos qual cetim puro, o Senhor Faustino foi o primeiro a me corrigir, ele disse: querida, não foi Deus quem inventou a arte, e sim os homens; os homens, sim, em sua ambição de reproduzir as belas criações de Deus, o universo infinito e magnânimo, a alma ambiciosa de Eva, a benevolência de Adão, e fomos nós, seus ilegítimos filhos, quem forjamos a arte a fim de imitar a beleza e a perfeição, a arte mais pura e perfeita é aquela que vê o que os olhos de Deus vêem e ouve os acordes mais sublimes emprestados aos gogós dos pássaros e correntezas, jamais o homem pode se equivaler a Deus mas pode, com suas próprias mãos, reproduzir algo tão imenso e arterial. Virgínia passa as mãos pela meia-calça, está puída, ela enrosca os dedos suavemente no elástico gasto e abaixa-se um pouco como uma bailarina, vai dobrando bem devagar a meia-calça, mostrando a pele acobreada, sua pele é tão brilhante e viçosa quanto a minha meia-calça nova e bem passada, invejo-a, é macia ainda aquela tenra carne, passo a mão nas minhas pernas que se fingem sedosas por meros truques, interrompo sem querer o discurso, perco-me no Faustino, nome que inventei para parecer mais trágico que o real e porque ainda vive e nunca se sabe por onde seus olhos se espreitam à caça da próxima vítima, Virgínia senta-se na cama e com o pé em ponta, desce dobrando um e depois outro os gomos de meia-calça até arrancá-la de um pé, oh o pé, tão pequeno e limpo, incrivelmente limpo, fecho os olhos, a visão despida de seus pés nesse momento me levaria a um profundo escuro sem retorno.

link para o índice (atualizado conforme publicação)

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