O PIANO — 2. Ouvido-de-Nuvem
Esta é a segunda parte de um conto longo sobre Altiva, uma professora de piano e Virgínia, sua aluna. Elas estão na sala da casa de Virgínia. Quem começa falando é Altiva.
Apesar de meus modos refinados, e também por conta deles, venho de uma família humilde, migrante da seca do sertão, com uma mãe cozinheira, nabos e repolhos e mandioca, à parte de todo o amor por minha mãe, como tem à sua, não me sentia contente por um minuto só, tinha um desejo largo, mas escondido, e nas minhas preces pedia à Deus que me desse um dom, se Deus me concedesse essa dádiva até o fim dos meus dias O compensaria, ainda era muito pequena quando orava assim, mas na criança vive um halo de luz, está mais próxima do Ouvido-de-Nuvem, a criança sabe perfeitamente, se houver algum silêncio, seu destino profético. Na igreja, ouvia o órgão ecoar e meu coração ainda pequeno sofria suas modulações e então se fez sua luz, Deus desejava duas mãos humildes para tocar as mais belas sonatas, invocar as liturgias e acalmar o espírito de tempestades do nosso Senhor; Altiva falava com as mãos pousadas no peito e eu querendo tocá-las, molhadas ao se lembrar desse encontro divino, na verdade não queria ouvi-la pois essas histórias religiosas me aborreciam, minha mãe também tinha encontros furtivos com Deus e toda vez que voltava do armário onde Ele se escondia gritava coisas incompreensíveis, fechava-se no quarto sem comer, esfregava-me até que eu ficasse limpa dos pecados, ungia meu corpo numa água barrenta como se fosse benta, e eu pedia que aquilo fosse logo embora, que nos deixasse a sós, como os poucos dias lúcidos onde podíamos conversar sobre as coisas da televisão, sobre o estado doentio do mundo e as nervuras das desigualdades. Mesmo assim minha mãe nunca abandonava a loucura, tornando-se de repente caridosa, vendia nossos poucos pertences para fazer cestas embrulhadas aos pobres e já não tínhamos sequer televisão, e a bem da verdade, só o piano restava sólido contra a vontade de Deus naquela casa, tornei-me virtuosa, Virgínia, ela puxa minha mão a fim de me chamar de volta à sua história, na carência dos dias, contra tudo, os gritos de meus irmãos, apoiada só pelo meu velho pai que aplaudia meu senso de proporção e assim me tornei uma jovem que sabia tocar de tudo, pois Deus em termos de música não tem preconceito, Mozart, Bach, Vivaldi, Beethoven, Wagner, Tchaikovsky, Chopin, todos os grandes nomes e mestres; e me preocupei com nada inventar, tocar como os antigos. Eu, o instrumento pelo qual Deus se faria ouvido, atingir a Perfeição, deixar-me tomar pelo Sublime, Altiva tremia os olhos em êxtase, escancarar o paraíso para onde as boas almas aguardam em fila no umbral, lembrar-lhes que nunca é tarde para se arrepender e se humilhar pois no éden verdes são todas as folhas todos os dias do ano e apenas belas flores desabrocham e os prazeres são mais vistosos que qualquer um alcançado na vida terrena, um prazer de choro comovido, tão gigante que o coração fica cingido, o corpo desfalece, a pele escama como se em quenturas de um banho de ervas aromáticas joelho de Altiva roçava no meu, tão próximas agora, os cotovelos colados um ao outro, o calor era mesmo insuportável em minha casa, quase inadmissível, as janelas sempre fechadas, Altiva, importa-se se eu trocar de roupa?, um minutinho só, venha me seguindo e continue sua história, por favor, conte tudo de uma vez, estou aprendendo tudo, Deus ouve as lindas músicas que tocamos, como é sagrado o piano de Deus.