O PIANO — 1. Virgínia-Rosácea

este é um conto relativamente longo parado no meu computador. não sei mais o que fazer com ele: decidi separá-lo em partes e aqui apresentá-lo. Que o espírito de Hilda Hilst me perdoe, porque vou precisar.

Mariana Vieira Gregorio
4 min readSep 14, 2022

Próxima
Índice

flor mal feita desenhada em caneta preta sobre papel levemente amarelado, escrito 1. Virgínia-Rosácea

Virgínia rosácea, é assim que queria chamá-la, como um sopro, virgínia-rosácea, tem nome de flor. Uma flor desabrocha feia e gulosa no jardim, quando passei ali me dei conta que sua mãe tem mal-gosto e escolhe a dedo flores gordas, borradas, feitas às pressas pelos anjos somente para alimentar os bicos dos pássaros, enroscar nos cílios da barriga da mariposa, bonita apenas ao olho do sapo escamoso que lá mora. Flores que se espalham sobre musgos, nascidas para vingar, procriadoras, ervas-daninha de desejo de toda a terra pertencer. Não sabe, Altiva, que minha mãe não cultiva nada, seus dedos moles esburacam caminhos de terra a escarafunchar minhocas, não poda e nem aduba, quando vê que nasceu sozinha insólita e selvagem a flor feia arregala os olhos de júbilo, pensa que é feita-toda da assombrosa natureza, mas gosto muito quando suas bochechas inflam vermelhas, o coque bem apertado na cabeça desafrouxa de tamanha rigidez dos pulmões, Altiva não podia entender minha mãe pois via nela as roupas floridas e o cabelo sem tinta, os quadros de cores espúrias na parede, violeta sempre, via o velho piano que o pai deixou de herança e Altiva a pensar sempre que quem tivesse um piano instalado na sala era da classe altíssima, gente de alta educação, vê o pedaço de terra selvagem de mato e pensa ser um jardim feito de mal-gosto, como se mamãe fosse uma velha rica excêntrica e era, mas também não era, não só por causa dos gatos a espezinhar pela casa, mas também assombrada por dentros-unguentos malignos, mas me deixe esquecer minha mãe, pois Altiva já se recupera, senta-se ao meu lado no banco de couro do piano, vai começar a lição. Altiva tem os olhos mais atentos que pude perscrutar, os dedos ossudos compridos e jamais sorri por acaso, balança no peito o escapulário antigo e bronzeado, peça de espólio minguado, escolhe sempre as blusas decotadas, penso que sente calor aqui, pois sempre as janelas fechadas, o ar enclausurado e amadeirado, as lâmpadas fracas e amarelas; sua casa deve ter margaridas e girassóis na janela, vitrais coloridos, prismas que refletem toda a luz, vento a balançar cortinas e toalhas, lençóis brancos recém-lavados a secar, inteira refração, tinas de água fresca, Virgínia-rosácea mais uma vez olha o meu escapulário, o redondo dos seios pressionados pelo arame de sutiã, o banco preto sempre encharcado de suor para me obrigar a sentir a sua água, pensa que não sei que vive em miséria, logo eu, que conheço a miséria a olhos vis, não sabe que sua mãe já não me paga, me dá cheques sem fundo com assinatura falsa, o sorriso torpe nos dentes, desculpa-se dizendo que se esquece como é que se escreve seu sobrenome de viúva, Schwalfemberg. O piano uma herança antiga de um bisavô músico e compositor quase famoso, esquecido nos compartimentos amargos da história, dele encontrei três composições, fúnebres e barrocas quando o barroco já se espatifara, música corroída como se ao tocá-la desafinasse o piano mais afinado, a bisneta de olhos claros e tez morena, magra de faminta, tenta a todo custo tocá-la, reproduzir com perfeição a tristeza sórdida do bisavô desafortunado, chamo-a Virgínia-rosácea pois fulgura com a cor das rosas vermelhas, os dedos curtos sem habilidade ao pressionar fundo a tecla pesada tornam-se sanguíneos, vistosos, vermelho-coagulado quase roxo de amora. Aquela flor feia lá fora exposta sem ninguém para arrancá-la, signo da ruína que se espalha pelo piso feito óleo quente e grosso, as paredes transpiram fumaças, cinzas, as aranhas fugindo do vapor venenoso a enlamear as vigas de concreto armado e resina de óleo de baleia; tudo sei pois já vivi muito e esta menina viveu só a loucura da família, queria te contar, Virgínia, um pouco da minha história, se não se importa. Ela pára de apertar a esmo o dó, olha para mim aflorada, segura meu braço com a mão pesada de piano. Vou fazer um chá, então. Lá vai ela fazer chá de jasmim, desde que contei ser meu preferido arrumou sacas de pétalas secas de jasmim, não tenho coragem de contar que o chá puríssimo de jasmim deve ser feito com as pétalas ainda frescas, desfolhar uma a uma em seu estado mais bruto e viril, despedaçá-las na doce juventude, arrancar ao sumo da vitalidade, e lá vem ela com a xícara, a água já borbulhava na cozinha úmida, a porcelana chinesa pintada à mão com finas flores delicadas, um canto lascado, única sobrevivente dos dias de aristocracia e assombro. Ela não toma o chá amargo, oferece-me gelo e em seguida os pinça como se fossem cubos de açúcar, acho graça, mergulha os cubos em água com gás misturada a um xarope caseiro, substituto para o refrigerante que a mãe não deixa comprar, quer manter a filha magra e esguia, se Virgínia pudesse se lambuzar em doces de abóbora e figos caramelizados floresceria mais vistosa, os seios inchados, as ancas abertas, as maçãs gordas, o suor então escoaria em torrentes fartas. Conte-me, Professora Altiva. Da onde vem? Como mesmo aprendeu o piano?

link para o índice (atualizado conforme publicação)

--

--