O PIANO — 11. O segundo movimento

Começa o segundo movimento. Você pode ler essa parte acompanhada de Nocturnes, Op. 9, n.2, de Chopin.

Mariana Vieira Gregorio
3 min readNov 22, 2022

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Parte da partitura do n. 2 , op. 9 de Nocturnes de Chopin. Escrito: 11. o segundo movimento

O segundo movimento começa e aperto os dedos dele em busca de ajuda. Vejo as mãos de minha filha. Brilham como cobre na luz branca. Escandalosas. Virgínia-rosácea, uma garotinha, rindo fácil para agradar, sempre rindo fácil, perdida nas loucuras da mãe, sozinha, abandonada. Sugando-me agora, monstruosa, fome voraz, é capaz de eu não suportar. Tenho ansiedade de chegar logo ao terceiro movimento, onde eu poderei aquietá-la, desmaiá-la, matá-la, calar seu quase-gemido, sempre escapando, desrespeitando o piano. Lágrimas me vem: Virgínia me abocanhou, seduziu-me, arrastou-me para um lugar que chama de paraíso. Mas todos os dias me dói, dói olhar para Deus, dói senti-Lo em suas entranhas, arrebentando-me pouco a pouco, toco em fúria, quase peço que pare, Virgínia menina tola, estúpida, sacas de jasmim seco, talvez um pequeno demônio more dentro dela, talvez a mãe tenha razão, as pétalas de sua flor abrindo-se e fechando-se em minha lombar, suas mãos suadas guiando as minhas pelo piano, o peso de suas mãos, violenta, este segundo movimento tão martelado e rude, quer me matar de seu desejo, menina ainda a me olhar de esguelha, a pedir para sentar no meu colo, a passar suas mãos nas minhas orelhas, mexer no escapulário pousado nos meu peito, despindo-se à minha vista, fingindo que me ouvia, que se interessava pelas minhas velhas histórias, agora sei tão bem o quanto me usou, como fui boneca em suas mãos infernais. E eu que por um momento imaginei o contrário, era eu quem a explorava e a usava como se empunha uma faca ou se segura um terço, conta por conta a escorregar na pele, fio seco da lâmina a esquartejar um animal morto, eu mesma o animal morto, seu último desejo é me asfixiar, me matar, arrastar meu corpo e exibir sua presa ao público, pregar-me no púlpito sob a saraivada de aplausos e urros. Escorrega líquida pelo meio de minhas pernas, com um movimento sutil poderia chutá-la e me livrar para sempre, mas como? Fecho os olhos, sua língua lambe meu escuro, seguro-me nas beiradas das teclas, estalo falanges, estilhaço as teclas, não posso parar agora, é preciso esperar o terceiro ato, quando terei novamente o controle, ela em minhas mãos, quando Deus acende um olho lá dentro, pequeno diamante incrustado em barro, toco, toco, toco, toco até não suportar, a última nota do movimento se alonga e o ar esvazia. É mesmo impressionante, Altiva, até a mãe da pobre menina sucumbiu à violência dos seus toques. Ela está matando a minha filha, eu a ouvi cochichar, o rosto numa expressão exata de júbilo-dor. Pego no revólver e puxo o cão para trás, mas não posso disparar sem antes ver o terceiro movimento; o fim, prometo, será o meu próprio espetáculo. A plateia se mexe irriquieta, há quem cobre os olhos e os ouvidos, quadris rebolam involuntários nas cadeiras, rezam em sussurros, tossem mais do que o costume, alguém poderia morrer, uma jovem na minha fileira vomita, uma mulher solta um gemido seguido de um arroto, uma horda de pessoas vibrando solitárias, nauseadas, alguns homens nas fileiras mais baratas já botavam o pau para fora e o sacudiam, o horror tomava o teatro. Se pensa que isso é sublime, Altiva, está enganada. O sublime nada tem com isso, o teatro deveria ser sagrado, olha o que fez? As pessoas nem se dão conta onde estão, a mãe da garota usurpada aos prantos come agora as próprias unhas. Virgínia, esconda suas mãos, uma mãe te pede, volte ao meu útero, não saia nunca mais, arranhe-o com suas unhas de feto, a natureza me deu um monstro. A última nota prolongada, todo o ar do mundo encolhido, meu gozo finaliza o segundo movimento, esta é a música de Deus, a música a escorrer das suas entranhas, Virgínia-anjo, plumas, escala o piano, senta-se com as pernas bem abertas, seus dedos do pé tocam contínuos a mesma nota a esmigalhar os tímpanos da plateia. Arfa, sedenta, quer que eu entre inteira dentro dela.

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