Praça da República

um conto de “Noturna” antes e depois da edição

Mariana Vieira Gregorio
12 min readFeb 6, 2023

Tive a breve ideia, no aniversário de São Paulo, de deixar disponível o conto Praça da República, sétimo conto de Noturna. como um presente, uma divulgação? não sei. passou o aniversário, a ideia ficou, o tema da praça me ressurgiu com força a ponto de querer escrever uma newsletter sobre. e decidi, sim, deixá-lo disponível aqui e, se é que alguém tem essa curiosidade além de mim mesma, deixar embaixo sua primeira versão, escrita no meu blog de então, o azulou (quando os blogs já estavam fora de moda).

“Praça da República”, que chamava-se apenas “a praça” no azulou, é saído diretamente do meu espanto em relação à Praça da República, no centro de São Paulo, que eu ia todos os dias a fim de esperar ônibus para o trabalho. escrevi-o em novembro de 2015, então fazia mais ou menos 4 meses que meu espanto durava; esse certo afeto, pelo texto ou pela praça, não me deixou em 2019, quando organizei os contos para compor Noturna e enviar o original às editoras. em 2020, eu deixei de frequentar a praça, principalmente por conta da pandemia. ainda posso me lembrar, no entanto, as primeiras saídas na rua, depois do terror inicial, justamente na Praça da República, que também se transformou. está mais clara de noite agora, mas também mais habitada (com barracas).

é engraçado ler o antes e o depois desse conto. de modo geral, acho que o publicado está melhor, mas não o primeiro parágrafo. no do blog tem um ritmo próprio, uma escrita repetitiva e mais oral que eu tentei sufocar, me parece. agora, lembro-me que jana/Jana veio do meu espanto com as carpas do lago sujo e esverdeado da praça; nesse espanto, está contido também a convivência ilusoriamente pacífica entre as famílias e as prostitutas da Praça da República. o olhar ingênuo se manteve; engraçado eu não querer extirpá-lo depois de quatro anos, mas alguns absurdos entraram na conta: a história do morador de rua que comeu uma daquelas carpas, que a minha amiga me contou. mas, principalmente, a garça — que, é claro, eu mesma vi porque não seria capaz de inventar uma garça naquela praça suja e muito urbana e muito menos o fato de ela ter pescado um peixe. lembro-me que, em alguma versão desse conto, Jana falava dos cavalos, os cavalos da PM que por todos os crepúsculos raspavam os cascos na rua em que eu morava, reverberando suas pisadas quadruplicadas nos prédios e dando a impressão de serem, de fato, uma tropa de cavalos pronta para uma batalha de um século passado. talvez eu tivesse tentando incluir uma história que me assombrou, a de um cavalo da PM que morreu eletrocutado — sua ferradura em contato com um daqueles quadrados de metal que por baixo passa eletricidade e que precisam de manutenção — na Praça da República. isso eu não vi, me contaram, e imaginei o cavalo caído e morto… na Praça da República, que, aliás, eu nunca consigo descrever. para mim, parece um desses lugares que se precisa estar para saber. se eu tentasse, bem, se eu tentasse não ia conseguir ser neutra, nem objetiva — noções subjetivas, culturais e sociológicas se infiltrariam no cerne das minhas descrições qual um bueiro explodindo e espalhando esgoto. e, revelação que tive agora, me parece que escolhi uma cadela para narrar esse cenário justamente por conter um ponto de vista ingênuo, quase neutro, quase despreocupado, atento e distraído na medida que me era necessário para fazer florescer uma outra praça da república. aquela praça, a praça de jana/Jana. enfim, voltando aos cavalos: desisti e deletei toda a existência deles, porque, de repente, me pareceu que eu teria que falar de todos os animais da Praça da República e que meu conto estava virando, literalmente, um zoológico. e porque, certamente, a história desse cavalo da PM morrendo eletrocutado numa praça pública merece um espaço todo só dela.

parece-me, também, que na primeira escrita do conto eu estava muito inspirada pela feminilidade, por algum misticismo que envolvesse o feminino: fêmea, mulher, maternidade, prostituição, lua, divindade, espelho, noite. fui tentada, em 2021, a tirar essa conotação, mas uma voz me dizia que eu não podia, simplesmente, deletar o cerne profundo do meu texto e continuar achando que é o mesmo (era melhor, então, escrever outra coisa logo se eu não acreditava mais em NADA daquilo). a garça, que precede de artigo a, diferente de o peixe, entrou, então, como uma divindade feminina que está acima dos assustadores peixes, mas que, apesar de olhar jana/Jana (ou assim ela se crer, refletida no seu olhar), continua sendo incomunicável e insensível aos reles mortais. no fim, fala mais de uma relação conflituosa com qualquer divindade que, embora bela ou sábia, é indiferente, seja feminina ou masculina. mas chega de lero-lero. aqui vão os contos:

Praça da República (Noturna, 2021)

A praça está em polvorosa, mas quando ela não está? Jana se espreguiçou qual um cachorro vira-lata. Os homens andam agitados e há muitos tipos por aqui, os débeis moradores de rua buscam o sol e se espalham pela terra, também cheiram e fuçam e às vezes latem. Uivam só quando a lua vai alta no céu, já que de dia os homens fardados andam chacoalhando penduricalhos nos cintos, olham e vigiam e rodopiam, enquanto Jana se esconde entre os negrumes que a noite encerra. Não quer incomodar, tampouco ser incomodada. Ela está alerta e sadia de noite, mas todo passo é um risco, então vai na cautela. As luzes dos postes atrapalham, amarelas e recortadas, a revelar pedaços do chão e esconder o céu. Jana se interessa pelas estrelas, mas os homens preferem fincar os dois pés no chão, e também o corpo, e também os pensamentos. Há os homens que passam andando apressados, aperreados com vontade de mijar, estes não deitam na terra, sequer pisam na terra, andam pelos caminhos asfaltados e ladeados por arabescos em ferro fino. Jana não os compreende, na terra, sob a fresca das árvores, pode-se vagar, veredas a escancarar as possibilidades de uma surpresa qualquer; já os caminhos ladeados, feitos de pedras cinzas, dão sempre no mesmo lugar, da mesma maneira. Ela repara que estes homens têm sapatos e talvez não queiram sujá-los, alguns deles até mesmo pagam para um engraxate os lustrar. Olha para os seus pés descalços, suas unhas são longas e pretas, pensa que deveria tomar um banho e calçar uns sapatos, assim, talvez, ficasse atarefada como os homens calçados.

Só pode tomar banhos tarde da noite, naquele lago, mas Jana também tem medo porque ali nadam uns peixes grandes de olhos esbugalhados. Tem medo de chegar perto dos peixes e escutar suas maldições de outros tempos e de outras águas. Ela se espanta com todo tipo de histórias de terror, quando ouve estampidos ou o corvo piar lá em cima, sai correndo com os olhos espertos. Sente que os peixes possuem sabedorias passadas, mas não todos: somente os grandes e coloridos, com as manchas alaranjadas ou avermelhadas espalhadas pelo corpo e aquela boca redonda delineada por um fio da mesma cor das manchas, boca sempre aberta a falar e a falar as maldições e contar as histórias, a diluir na água o peso da História que está escrita em seus corpos escamosos qual pergaminho com hieróglifos indecifráveis. Jana se aproxima, sempre devagar, da água do lago e fica o tempo todo a repetir um mantra: peixes, peixes, não apareçam, me dêem licença, peixes. Eles parecem inofensivos, mas ela sabe que toda a gente os teme e tem até orgulho de si porque, para olhá-los, pede licença aos deuses que dentro daquele olho habitam.

Jana tem muita sorte quando a lua está cheia e reflete na água do lago, aí os peixes evitam a superfície, se escondem da luz a se aconchegar no escuro limbo do fundo do lago esverdeado. Ela gosta de olhar o reflexo tremulante da lua, mas o que lhe dá alegrias infinitas é que pode se ver, a água feito espelho: fêmea empertigada, quer ver como anda sua aparência. Espanta-se com a sua forma ao comparar-se com as mulheres. As que andam pela praça são de dois tipos: aquelas a caminhar no sol e cimento, as senhoras e meninas bem vestidas, bem-calçadas e a carregar sacolas, e as outras, se esgueirando lânguidas e provocativas pelos cantos arborizados. Como Jana, essas mulheres também habitam a noite, no crepúsculo despertam seus corpos para trabalhar e mesmo arruinadas, sempre voltam; às vezes falam alto, mas agem de modo furtivo. Mesmo assim, acredita que as mulheres possuem semelhanças entre si, equívocas com os seus segredos, e também se parecem um pouco consigo própria. Quando se olha no reflexo vê a todas, iluminadas pela lua cheia, e Jana abre a boca e urra como as lobas. E no ar tomado pela melodia do seu uivo, ela lembra-se de seus ancestrais, de um mundo antigo, escuro e caótico, onde cães e humanos perambulavam entre os escombros, se resfogelando juntos nas folhas secas. Jana sabe que todos fomos selvagens, e quando os peixes permitem e a lua cresce o olho, a natureza desperta em sua glória e seu horror. Até que o peixe sobe à tona e borbulha palavra por palavra: calada cadela, os deuses tudo veem, aos deuses, nada bem.

Numa noite rasgada de pixe, um homem desses que dormem em qualquer lugar, um homem que bem poderia ser seu amigo e com ela dormir entre as folhagens, pescou um peixe vermelho numa vara improvisada. Jana se assustou, quis lhe avisar, mas absteve-se ante a alegria do homem magro: a gritar, ele atiçou fogo dentro de uma lata e fritou o peixe do olho vermelho. Viu, espantada, as labaredas queimarem o corpo escamoso até dourar e o olho estático escurecer e ouviu os deuses, dentro do lago, sussurrarem suas maldições. O homem, surdo da fome, engoliu tudo rápido como se temeroso de um crime. Jana deitou-se ao seu lado quando ele foi dormir, a vigiar seu destino, e dito-feito: no dia seguinte, jazia apenas o corpo, sem naco algum de vida, lívido e verde era agora o triste homem magro. Os homens de penduricalhos metálicos no cinto cobriram o homem com um pano branco e o arrastaram depressa até um carro grande. Não ouviu choro nem reza e o dia se refez igualzinho aos outros. Nem mesmo os outros peixes, a nadar vivos e robustos, percebiam que, agora, faltavam dois no planeta. Desconfiou da divindade daqueles peixes sem misericórdia, a operar apenas velhas vinganças entre as escamas rubras. E a flor de suas mesquinharias por fim emanou, quando a ave enorme pousou na beira do lago.

Ela chegou no meio da quente manhã, cheia de sede, e aterrissou no lago limoso, empertigando-se em cima das suas longas pernas finas. Jana tentou imitá-la, equilibrando-se apenas em dois pés — pois assim eram os homens e os pássaros –, mas não conseguiu. Os seres humanos também não conheciam a ave, e se aproximaram para tirar fotos e rirem, entusiasmados, olhando fixamente para aquele anjo do apocalipse. O bicho era grande que só! Tinha um olho redondo e parado, cruel como o olho dos peixes, um bico grande e avermelhado, a barriga de plumagem branca, as asas de coloração acizentada, o cocuruto da cabeça preto, como uma coroa negra. Quando se alargava, querendo se espreguiçar ou a fim de espantar algum curioso próximo demais, suas asas engrandeciam em três vezes a dimensão do seu corpo. Era o tamanho do mundo, pensou Jana. E, então, algo terrível se sucedeu: o bicho engoliu um peixe. Sem demoras ou delongas, cru e vivo a debater-se, sem se preocupar com os olhos dos homens ou com a língua sibilante dos deuses debaixo d’água, sob a luz vidente do sol, a garça o engoliu de uma só vez. E Jana viu, no terror do próprio olhar, a ave a olhando também: no reflexo do olho dela estava o seu próprio, uma bola de cristal, e soube, uma certeza a pulsar nos órgãos, que a garça era a rainha deste mundo. Ela arqueou as asas e curvou o longo pescoço: basta, peixes, basta, o ciclo não se faz de círculos. A coroa negra no alto da cabeça refletiu o brilho das águas escuras do lago quando a ave alçou vôo rumo ao céu azul. A lua branca já aparecia de dia, e Jana pensou que lá ia aquela deusa inteira, dormir na meia-lua, destemida e insolente. Aquela que comeu, junto dos peixes, as profecias, e lá de cima, as esmigalha em gargalhadas.

A praça (azulou.blogspot.com, 2015)

a praça está um em polvorosa, mas quando ela não está? jana se espreguiçou igual um cachorro vira-lata. os homens andam agitados e há muitos tipos deles por aqui. os débeis moradores de rua buscam o sol e se espalham pela grama. eles também cheiram e fuçam e ás vezes latem. mas latem quando a lua vai alta no céu, porque de dia há os homens fardados que andam chacoalhando penduricalhos negros nos cintos.
eles olham e cantam a rua e rodopiam e jana se esconde entre os negrumes escuros que a sombra da noite dá, porque não quer incomodar, tampouco ser incomodada. ela está alerta e sadia de noite, mas todo passo é um risco, então vai na cautela. as luzes dos postes ora atrapalham, ora ajudam; as luzes amarelas recortadas mostram o pedaço do chão e escondem o pedaço do céu. jana se interessa pelo céu, mas os homens preferem fincar os dois pés no chão, e também o corpo, e também os pensamentos.
há os homens que passam andando apressados, aperreados com vontade de mijar também, e estes não deitam na grama, sequer pisam na grama, eles andam pelos caminhos ladeados das círculos de ferro fino; jana tenta compreendê-los, porque o caminho pela grama é um caminho curto ou um caminho que se faz e refaz de diferentes maneiras. e os caminhos ladeados, que são os caminhos cinzas, os caminhos de pedra, eles dão sempre no mesmo lugar, na mesma maneira. jana repara que estes homens tem sapatos e talvez não queiram sujar seus sapatos na grama. jana olha para os seus descalços, suas unhas são longas e pretas, jana pensa que deveria tomar um banho e talvez calçar uns sapatos; assim talvez ficasse atarefada como os homens dos sapatos.
jana só pode tomar os banhos tarde da noite, na fonte ou naquele lago; mas jana também tem medo do lago porque ali nadam uns peixes grandes de olhos esbugalhados. jana tem medo de chegar perto dos peixes e eles lhes contar maldições de outros tempos; de outras águas, jana se espanta com todo tipo de maldições; quando ouve estampidos ou o corvo piar lá em cima, ela sai correndo com os olhos espertos. jana não sabe muito bem porque sente que os peixes tem sabedorias passadas, mas ela sabe que não são todos; são aqueles grandes e coloridos, com as manchas alaranjadas ou avermelhadas espalhadas pelo corpo e aquela boca redonda delineada por um fio da mesma cor das manchas que está sempre a falar, a falar as maldições e contar as histórias, e a diluir na água o peso da História que está escrito em seus corpos escamosos igual pergaminho com aquelas manchas misteriosas. jana se aproxima sempre devagar da água do lago, sempre de noite também por causa dos homens fardados, e sempre leva um pouco só de água; fica o tempo todo a repetir um mantra que diz, peixes, peixes, não apareçam, me dêem licença, os peixes. eles eram pequenos e pareciam inofensivos, mas jana sabia que toda a gente tinha medo deles; e jana se sentia um pouco orgulhosa de si porque para olhá-los ela pedia licença e ia paciente, ela pedia licença aos deuses que ali dentro daquele olho habitavam.
jana dava muita sorte quando a lua estava cheia e refletia na água do lago; aí os peixes não vinham mesmo para a superfície, se escondiam da luz e se aconchegavam no escuro limbo do fundo do lago esverdeado. jana gostava de olhar o reflexo tremulante da lua, mas o que lhe dava alegrias infinitas é que podia se ver, como um espelho; jana, fêmea empertigada, gostava de ver como é que se parecia, como é que ia a sua aparência. ela ás vezes se espantava com a sua forma, e também se achava um pouco diferente demais dos demais.
as mulheres que passavam pela praça também se dividiam um pouco entre as da grama e as do caminho; as do caminho eram as senhoras e as meninas, calçadas e com sacolas, as da grama eram jovens provocativas que ficavam por ai esperando a noite chegar. como jana, essas jovens também habitavam a noite, porque é na noite que despertavam e colocavam seu corpo a trabalhar; elas andavam e chamavam os homens e estavam arrumadas. elas ás vezes pareciam arruinadas; mas sempre voltavam para a noite, sempre voltavam para a noite.
jana acreditava as mulheres todas se pareciam consigas mesmo, e com ela mesmo, e por isso que quando se olhava no reflexo, podia vê-las todas, iluminada pela lua cheia, que espalhava um canto suave, mas de voz rouca, como o de uma avó que não entende mais o sentido das palavras, mas as canta para continuar existindo; sua vida, sua história e sua divindade.

garça na praça da república, fotografia tirada (antes do roubo do meu celular na praça) em 2017

o texto “o prazer das praças” na minha substack peixe na glote complementa esse post e reflete meu apego de interiorana às praças. aproveito para divulgar minha newsletter, chegam de quando em quando, ou seja, de surpresa (quando eu tenho algo a dizer), no seu e-mail, caso se interesse por anedotas mais descontraídas que os textos daqui tomaram rumo.

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