O PIANO — 13. Fim

Chegamos ao fim dessa jornada que se fez mais longa do que deveria. O Piano é um conto longo que você pode ler em partes através do índice ou, talvez, esperar o PDF sair. Quem saberá?

Mariana Vieira Gregorio
3 min readDec 6, 2022

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Índice

desenho de uma menina pelada em cima do piano, fundo branco, linhas pretas grossas. árvores na cabeça da menina

O piano do bisavô de Virgínia jamais foi retirado do palco do teatro. Goteja e martela sozinho, cantando ruídos infernais e desafinados. O sangue do crime embrenhado entre as cordas coagulado a entupir artérias e produzir moucos estrondos. Uma nota qualquer desafia estridente a cúpula e os estofados, estoura os tímpanos desavisados, estoura as tubulações. Dos canos estourados e das goteiras imundas, o lugar todo inundou com um líquido escuro e pegajoso. Uma vela um dia pousada descuidada sobre o piano tentou, através de um sopro e gasolina e o desespero dos homens, incendiar o instrumento. O teatro pegou fogo, o piano não. O teatro tornou-se ruína. Poltronas puídas e deslocadas, as asas dos anjos descascadas, as ninfas douradas agora esburacadas e condenadas pelos deuses vingativos a viverem como monstros entre a ralé, o lustre no chão esparramando vidros e luzes. O lugar se tornou amaldiçoado. Desde a morte de Virgínia, os espíritos rondavam o lugar e faziam troça e abriam buracos e desafinavam instrumentos e desconcertavam músicos excelentes e arruinavam suas carreiras. O casarão à sombra de três grandes palmeiras imperiais ganhou pixos e depredações, foi destituído de qualquer coisa com valor, mesmo parafusos não foram poupados. Caiu em desgraça. Sobraram as paredes, os resquícios. E o piano, que ninguém conseguia arrastar dali. O corpo embalsamado de Virgínia ou seu espírito vingativo, o rancor e os olhos injetados de Altiva impediam, emperravam, como se chumbado ao palco de madeira. O teatro se tornou morada. Sob as marquises e colunas e grandes janelas, entre os antigos camarotes, sobre o chão acarpetado, dormiam a gente sem lar, a olhar as estrelas apagadas da alta cúpula. Dormiam sob os sons misteriosos do piano a regurgitar e reclamar, um hipopótamo odioso borbulhando entre águas barrentas de pântano. Dormia a mãe de Virgínia, desconsolada, perto do piano, o corpo coberto de aranhas. Todos os dias, via gente desgarrada e desmoralizada se aproximar do piano. E ele os acolhia. Apertavam sem dó suas notas duras e elas amoleciam aos seus dedos sujos, derretendo-se feito Virgínia. Via-os gozar repetidas vezes em torno do instrumento. O piano era bom para com os indignos. Aceitava-os e fazia carícias em gente há muito solitária. A mãe de Virgínia não se atreveu a tentar, isso cheirava a Virgínia, finalmente diluída para distribuir prazeres e sonhares. O piano louvado como um deus. A comunidade da ruína do teatro agora o limpava, o protegia, ouvia suas destoantes sinfonia em êxtase. Não deixariam que o arrancassem dali, o último presente divino para os filhos esquecidos de Deus. Das ruínas escuras do teatro surgiu um templo. E perguntaram ao piano o que desejava, e rangendo seus dentes estilhaçados se fazia entender: tinas frescas de água, cristais, prismas, flores, luz do sol. Os fiéis abriram as paredes da ruína à marretadas, as mãos sangrando. Quando a luz do sol tocou a superfície das notas o piano aquietou. Sentados ao redor dele, os fiéis ouviram a mais bela melodia produzida por serafins e demônios invisíveis. Marretadas ritmadas e atônitas penduravam-se no ar, notas distorcidas espirulavam brilhantes e agudas para cair num soturno grave fúnebre e quente, o piano fremia e vibrava como os primeiros amantes do mundo. O eco de cada nota envolvia a futura num arranjo inescrupuloso. Cada um trazia uma flor ao colo e, em êxtase, trataram de fornicar uns com os outros. Finalmente, o teatro servia orgia. A plateia solitária do espetáculo, a mãe de Virgínia, cobriu-se de aranhas e papel celofane. Nunca mais acordou. Finalmente, silêncio.

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