O PIANO — 12. O terceiro movimento

Começa o terceiro movimento. Você pode ler essa parte acompanhada de Nocturnes, Op. 9, n.3, de Chopin.

Mariana Vieira Gregorio
4 min readDec 6, 2022

Anterior
Próxima
Índice

desnho de parte da partitura do n.3 op. 9 de nocturnes de Chopin. escrito 12. o terceiro movimento

Altiva, vem. Venha. Não se demore. Estou por um triz. Nada… os pensamentos vão se acabando, como um fio, um longo fio a terminar. Já pensou no fim das coisas? Segue-se o fio, volteamos-no, percorre o mundo, encaracola e num átimo termina, penso como o fio, os pensares terminam num abrupto vazio. Pequena perto de tudo, da terra, dos fiapos. Um relógio, não, ele não termina. Volta e volta e volta. Mas não há porque chorar, ninguém me entregou a tesoura a não ser a própria Morta, a parca, talvez ela nem esteja a afiar a lâmina, talvez distraída Décima tenha esquecido da extensão da linha e os dedos encontram o fim. Morta pergunta: cortou o fio? Não, pensava em outras coisas. Nona, está cansada de tecer? É isto, então. A morte mais uma exaustão que um relâmpago. Deus a minguar e não Deus a expandir. Mas espere, Altiva ainda faz suas últimas cócegas, um último favor, o último canto de felicidade. Sumo de mim. Tira todo o sumo. Deus a cochichar: o terceiro movimento é agora. Virgínia-rosácea, vejo pouco seus olhos, mas os imagino. Decorei-te inteira, todos os modos, feições, assim não preciso de olhos. Perto, quente, as cordas vibrando por debaixo da sua pele. Artérias e veias num só movimento. Meu escuro ainda arde. É aqui que começa o terceiro movimento, depois de Virgínia já ter se encharcado duas vezes. A vulva dela inchada, vermelha, bulbos doces a rasgar a fina pele superficial e deixar escapar correntezas, diques destruídos, a flor se esbanja, finalmente estourada. Sinto-me viva novamente, na mão esquerda o dó e a direita a tocá-la. A primeira nota é dor. A plateia se comove. Ao meu lado, adultos se engasgam em caretas de bebês e choram. Uma piedade o que faz com eles, crime de prisão perpétua. Transpiram. O teatro cheira a suor. Virgínia, enterrarei meus punhos aqui, darei tudo de mim para tocar uma melodia lenta, sonífera, de uma mão só. Um dedo e sinto a mucosa já latejando, pressa insuportável. Volteio, carícia, acalmo. Virgínia geme. Toco, de olhos fechados, o que Deus pedir. Não tenho domínio de mim, é Virgínia quem guia, ou antes, seu estado de transe, os serafins alados, os beija-flores diminutos e divinos fremindo. A flor se abre pouco a pouco, pétala a pétala. Circunferência. Dentro de cada flor surge outra flor, mais vistosa que a outra. Pétalas úmidas de orvalho. A melodia segue lenta, letal, tresloucada. Espíritos espezinham os ouvidos. O Diabo se sentou no piano. Minha filha, Virgínia. Por que deixou que Altiva te fizesse assim? De todos os lados, junto da melodia, ouço os gemidos. As pessoas perderam qualquer escrúpulo, homens e mulheres se masturbam. Ninguém está de olhos abertos, só eu e o homem papa-mosca. Por um momento, o rosto de minha filha invade a luz branca, Virgi-que? O olho esbugalhado e a pele pegajosa, manchada, a língua comprida, rã-polvo enorme a engolir aranhinhas, rastejando com sua barriga pelo piano, o líquido negro escorrendo. Não vê, Altiva? Não vê? As aranhas me avisaram. Ela quer o mundo. Buraco negro dos seus feixes de luz. Uma fome no botão da minha flor, uma fome de seus dedos, de seu amor. Altiva, me come. Minha terra em expansão, treme, as cordas vão e vem, empurro e puxo dentro de mim, acaba-se. Acaba-se em mim. Não é o suficiente. Virgínia, espere, virgínia-rosácea, vermelha das rosas esmigalhadas, dos tomates maduros, Virgínia, virgínia, que deseja? Dois, três, quatro dedos. A outra mão se apressa. Virgínia-víscera, arranco seus fios, pedaço de carne, lasco órgãos, forrada de merda do adubo do mundo. O teatro convulsiona. A plateia grita, arfa, gente no chão, cenas de uma batalha. Profanas. Pego em minha arma, o gatilho acionado. Um disparo e fim. E basta. A mãe a toca. Sente o metal vil e assassino. Levanta-a comigo. Os olhos em choque. Virgínia engole meu punho. Minha mão abre e fecha-se dentro dela. Pulsa. Virá. Agora. A qualquer momento. O sopro de luz. Meu escuro se contorce, tortura. Minha mão decepada. Minha mão direita. Deus me cobra. Deus deseja nosso dom. Deus nos inveja, Virgínia! Deus nos engole. Toco a última nota, o último abalo: longo, soprano spinto. Desmaiada, destituída, desaparecida, branco, Altiva, mamãe, plateia, perco meu nome. Virgínia de virgem. Morro sacrossanta, purificada, Deus não me visita. Perdeu-se nas dobras infinitas do prazer, a flor ainda viva e já murcha. Meu corpo lavrado num campo de girassóis. Parto. Parto de mim. Um anjo sagrado para danar as almas corroídas. Solto-me, encharco. Tanta água. O estampido encoberto pela última nota, Deus assoviando a preferir ouvir o piano que o tiro. A seiva de Virgínia vermelha escorrendo chuva pingando entre as teclas, titilando as notas. A seiva da última flor espinhosa. Um grito, as luzes se acendem. Virgínia morta, uma arma trêmula no ar, a última nota ainda a ressoar nos cantos e nos dentros, a plateia em fulgores, ânima-morta. Virgínia jaz vermelha-rosácea. Deus se mostrou, mas seu sopro infinito não coube neste mundo de horrores. O sangue escuro tinge os dentes brancos do piano mudo.

link para o índice (atualizado conforme publicação)

--

--